17 junho 2008

Decalque do Real - "Diante da Dor dos Outros", S. Sontag

“(...) em relação à fotografia, eu era tomado de um desejo ontológico: eu queria saber a qualquer preço o que ela era em si, por que traço essencial ela se distinguia da comunidade das imagens. No fundo, eu não estava certo de que a Fotografia existisse, de que ela dispusesse de um gênio próprio”. Ao iniciar o seu argumento em “A Câmara Clara”, Roland Barthes afirma que essa tentativa o levou a descobertas tão inacreditáveis como esperadas. A fotografia se esquiva, é inclassificável, é indizível. Exprime o mistério do que, tecnologicamente reproduz e repete ao infinito, mas que perde a capacidade de repetir-se existencialmente. Para o autor, a fotografia nunca poderá ser transformada filosoficamente, estando inteiramente ligada com a contingência de que ela pode ser um “envoltório transparente e leve”, ou seja, apenas ser. Nesse sentido, ela traria consigo sempre o seu referente, ambos atingidos pela mesma imobilidade, pela mesma passividade impressa, pelo decalque, sim, genuíno, mas sempre um decalque. Estariam coladas, a realidade e a sua captação, uma à outra, membro por membro, “(...) como esses objetos folhados cujas folhas não podem ser separadas.” O que Barthes clasifica como fatalidade – essa “teimosia” incessante do referente estar sempre presente – seria o princípio da sua inclassificação. Ao não poder ser classificada, ao não poder ser esmiuçada, ao ser tão abrangente quanto concreta, jamais conseguiria adquirir a nobreza ou a segurança de um signo, jamais seria digna como uma língua. Para o autor, as fotos são signos que não prosperam, que coalham, pois seja o que for que ela nos mostre, elas serão sempre invisíveis, apenas um portal, um suporte, uma mídia: não são elas que vemos, mas sim ATRAVES delas.Muito se diz a respeito do momento epifânico do click, do dedo pulsionador, da captura abrupta e tantas vezes violadora do tempo. Para Richard Avedon, as fotos possuem uma realidade que as próprias pessoas são incapazes de imprimir em suas vidas. O que é ser real? Fazer parte? Somos reais se estamos “em quadro”. Não importa a nossa grandeza se somos 35 mm. Podemos existir sempre e quando tenhamos um representante, uma espécie de porta-voz imagético que transporte e traga para a superfície aquilo que supostamente somos. Fotos que enquadram o mundo merecem ser enfeixadas em álbuns, afixadas e emolduradas por as vez, pregadas em paredes, projetadas. Jornais e revistas as publicam; a polícia as dispõe em ordem alfabética, os museus as expõem, os editores as compilam. Captamos, mexemos e manuseamos nos mesmos, o que vivemos, a nossa própria vida.Em “Sobre a fotografia”, Susan Sontag desenvolve um raciocínio polido e “honesto” ao conferir às fotografias uma tarefa educadora: quando somos inseridos na lógica do código visual, elas modificam e ampliam nossas idéias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de despejar o nosso olhar. Não basta observar, é precisa ter o know-how, assim podemos ter a sensação de que podemos reter o mundo inteiro latentemente nos “cristais de prata” da nossa “película”. Segundo Sontag, fotografar é apropriarse da coisa fotografada, colocando-nos em uma postura de poder e autoridade com relação ao mundo. As fotos são experiência capturada, e a câmera é o braço ideal da consciência, em sua disposição aquisitiva. “Imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir”.Por que do choque com as fotos de Abu-Ghraib? Por que, horrorizado e com repulsa Bush pede desculpas pelas humilhações causadas? Por que do desconforto inicial com o que nos foi mostrado pelos próprios soldados norte-americanos e suas potentes armas mortíferas digitas, calibre 3 ou 4 mega pixel? Quando fotografados, tornamo-nos reais, assim como o próprio toque de Midas, a foto nos cristaliza não banhando-nos de ouro, mas sim de veracidade comprobatória. Somos imagem, somos espelho, somos a cópia, e imprimimos em papel perolado ou fosco a nossa “aura”. O que era pressuposto do olhar, agora é seu resultado. Sentimo-nos onipresentes e conscientes da realidade imagética sempre e quando esta chegue até nós. Não precisamos sofrer ou fazer sofrer para sentir, não precisamos viver e estar para saber. Esse foi o ponto de Abu-Ghraib. As fotografias nos transportaram para a pele dos iraquianos torturados, e também para a dos torturadores divertidos norte-americanos. Mas não nos deixemos iludir. Sons, cheiros, sentimentos são capazes de nos conduzir a um grau de abstração suficientemente apto a nos remeterem a situações vividas. Mas quando se trata de imagens, sabemos que a associação é rápida,a conexão é direta e não enfrenta nenhum tipo de obstáculo. Quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro. As fotos das torturas infligidas nestes seres humanos (ou no técnico norte-americano degolado), criam arquivos de imagens comprobatórias, representativas, que englobam idéias comuns de relevância e desencadeiam pensamentos e sentimentos previsíveis. Pensamos a história (assim como a própria guerra no Iraque) sob forma de videoclipe, através de flashes e impulsos magnéticos. Numa sociedade em que falta tempo para a preocupação com o sofrimento alheio, a fotografia pode, até mesmo, ser uma forma prática de entender um conflito que está acontecendo muito longe, mas que temos o dever moral de conhecer. Mas faço aqui um parêntese. Não quero abordar o tão batido tema do gosto pelo mórbido (ainda que S. Sontag o faça de maneira razoavelmente satisfatória em “Diante da dor dos outros”) mais uma vez, nem quero demonstrar como o ser humano é baixo e pode ser podre quando posto defronte da dor alheia, mas atire a primeira pedra quem não procurou mais fotos da “prisão-da-estação” na internet, ou não pediu para o amigo mandar na íntegra o vídeo do degolamento. Sim, afogamos nossa volúpia nestas imagens, e faço de William Hazlitt minhas palavras: “o amor à maldade e à crueldade é tão natural aos seres humanos como a solidariedade”.Nelson Brissac, por sua vez, argumenta a respeito deste “olhar através” (que Barthes tanto cita) desta janela, onde só se semeia, ultimamente a ausência da presença. Por já não existir o indizível, tudo está ao nosso alcance. O mundo tornou-se vitrine, opaca, reproduzida, enlatada. Através de uma proliferação cancerígena de imagens o nosso inconsciente se acostumou de tal forma a ingestão programática e rentável de cores, luzes e formas impressas que já não há ausência. Não nos restam dúvidas também de que o conflito imagético de Abu-Ghraib é apenas mais uma febre da consciência adormecida que, de quando em quando desperta como um ogro tirado de sua hibernarão. Não duvido que em um futuro não tão longínquo, a imagem do iraquiano prestes a ser eletrocutado, com um saco de batatas na cabeça, com os braços abertos como Jesus Cristo seja a referência nos livros de história a respeito do conflito no Iraque, assim como a criança vietnamita, horrorizada e correndo de uma paisagem da morte se tornou um ícone pop do nosso século. O problema não é que as pessoas lembrem por meio das fotos, mas que só se lembrem das fotos.

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