05 abril 2010

da série: exercícios de escrita criativa - 5

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Premissas: 1 epifania, 1ª. pessoa do masculino, 20 palavras começadas com "v" e 10 com duas sílabas em "i"


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Ziiip.

A sexta-feira era de folga e eu sentia a casa só minha. Vagaroso e sonolento em pleno meio-dia, não soube dizer se o melhor era fazer faxina ou pagar contas atrasadas. Fitei o gato no sofá, vagabundeante sob a máquina de escrever como só ele consegue ser em manhãs muito quentes, e sem vacilo decidi que o melhor seria encarar o gaveteiro de Pandora. Três fundas gavetas negras de profundidade incalculável: um violento volume de vida de quase 10 anos de acúmulo caótico nunca organizado.

Escolher o gaveteiro dentre o iminente é o que eu chamo de procrastinação transferida. Quase nunca faço o que verdadeiramente preciso e sempre que possível, postergo o mais urgente. É o meu pequeno - e vergonhoso - protesto contra esta vidinha burguesa de vencimentos condominiais e endereços de assistências técnicas presos à post-its no espelho vaporoso do banheiro. Sinto-me alma livre que, ao invés de ticar, vaidoso e capricorniano, um dos itens da sua lista de afazeres semanais, opta por outra obrigação, das que nem temos coragem de anotar; a faxina de um decênio.

Sem uma gota de pressa, comecei pela última das gavetas. Sou dos que lêem revistas pelo final e eventualmente pulo para o fim dos livros antes do tempo. “Não acredito em finais felizes”, disse a mais de uma em tom voraz, mais ridículo do que convincente. Mas a escolha viria a calhar; entre Playboys voluptuosas e binóculos voyeristas, descansava em pó um estojo azul anil abarrotado de lápis de cor. Eram quase uma centena; velhos, carcomidos nas pontas, com colas de física em minúscula caligrafia. Em um canto, no fundo, o meu apontador em formado de globo terrestre. Há quantos anos eu não apontava um lápis? De pronto, de susto, um violento impulso pueril pôs em marcha um reflexo motriz desses que guardamos em músculos ainda infantis. Lixeira entre pernas, pus-me a apontar todas as tonalidades possíveis por minutos a fio numa repetição de movimentos que há muito meus dedos não viviam.

Vinte e três minutos e 78 cores depois, só o prazer de duas grandes e vistosas bolhas no polegar e dedo médio seriam provas vivas de minha paz de espírito. Que deleite! Que prazer! Com que rapidez perdemos as obrigações irrefutáveis da infância? Quando é que nos desapropriam da certeza do óbvio? Sob qual desculpa escolhemos afiar os comentários ao invés de pequenos pedaços de madeira? Com o vigor de uma mente em branco, lembrei de ser criança e rabisquei a conta de luz com feixes de todas as cores.  Fechei a gaveta, liguei o som e cantei muito, muito alto.

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créditos: Foto Olivia Bee

Um comentário:

  1. Anônimo12:01

    essas lembranças, tem cor de lápis verde água...

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