02 junho 2010

da série: exercícios de escrita criativa -11

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Premissas: escrever um texto descritivo sobre alguma parte do corpo
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Sobre aquelas manhãs

Nos dias em que o sol não me nasce e o peito é uma janela por onde a força do vento gelado corre e estupra dores, ele sabe. Não pula em regozijo de uma noite bem dormida. Não afia seu instinto na saia do meu leito. Não grita em protesto à desonra de dormir fora da alcova.
Sobe, como em escada caracol, até o canto diagonalmente oposto; invisível, termômicro. Senta-se esguio - silencioso, acima de tudo - e nele enrola-se. Como se envolto de um trono de temperança e nobreza, observa-me com minúcia de análise e frieza de um temor ainda não confirmado. Confere se durmo acompanhada. Observa se me acompanha o travesseiro. Checa se amanheci esperançosa para a janela, ou desgostosa para o armário. Em rápidos segundos, ele sabe. “Hoje é dia”.
Certeiro e suave, levanta em câmera lenta a base, que se segue das rajadas mais amareladas, até a ponta ocre. Quatro ou cinco dedos acima da colcha, com aquela pontinha manchada no ar, mia; complacente. Enquanto se queixa, apoia com o mesmo respeito aquela estranha extensão sobre as suas patinhas dianteiras. Espera o meu sinal e me fita sem medo. Imóvel. Cavalheiro.
Tap Tap. Vem, eu digo. É a sua deixa para o resgate. Livra-se daquela barreira peluda que o protege dos possíveis infortúnios da má comunicação entre humanos e felinos e caminha a passos largos pela colcha com o rabo altaneiro e ombros enfíngicos. Sabe todos os “porquês” daquela manhã.
Perto, mas não o suficiente para tocá-lo, serpenteia aquele apêndice caudal sobre a colcha acariciando com a ponta o que quer que esteja a mostra de meu corpo. Faz-se presente, faz-se sentir. “Estou aqui”, diz a ternura. “Fico até passar”, confessa o ritmo. Aos poucos e sem uma gota de vulgaridade – como só os gatos sabem fazer – me dá a barriga. Sei que não está me pedindo carinho, mas sim permitindo que eu regozije junto com ele a delicia de um bom cafuné no lombo de um animal peludo. O seu rabo, em alerta, espera o primeiro carinho em alto. Ao segundo ou terceiro, já certo da proveniência daquela mão, deixa cair a cauda e assim a libera para a sua própria diversão, deliciosamente espásmica, como se regida por um outro sistema nervoso.
Pisca um olho. Pisca o outro. Fecha os dois, estica o pescoço e deixa aquela deliciosa mata de pêlos brancos do seu papo para cima. “Venha, aqui também é macio”. Sem a menor possibilidade de negar um pedido felino – aos gateiros cabe essa certeza – esqueço por um momento todo o pesar. Acaricio com o cuidado e o amor de quem massageia a sua própria alma aquela felicidade deliciosa tão alheia a mim.
prrrrrr… prrrrrr… ao primeiro ronronar tenho a já velha certeza: naquelas manhãs, é aquele pequeno, minúsculo coração batendo na minha cama que me ajuda a lembrar do meu.


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4 comentários:

  1. Como a relação de vocês é diferente da nossa.

    Nas minhas manhãs o único que ganho são dois míseros minutos dele em meu colo para satisfazer sua necessidade diária de calor gerado por um humano. Depois agradece com um miado e vai embora.

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  2. Delícia de texto flor, delícia!

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  3. Linda homenagem ao Fellini. Aos gateiros cabe a certeza de que só um companheiro que reconhece teu cheiro a milhas de distância merece dividir esses momentos com a gente.
    beijo, amor!

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  4. Anônimo12:49

    gostei muito!
    eu.

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